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Comer é o final de um ciclo de produção que envolve muitos elementos. Quem consome e cozinha sem veneno sabe disso.

Comer consome parte do nosso dia, muito mais do que o plantar e o colher, e é a parte do processo que mais temos acesso. Podemos controlar o que colocamos no nosso prato e, com informação, assegurar que é saudável e socialmente justo. Mesmo que os produtos orgânicos pareçam ser distantes da realidade de grande parte da população, alguns projetos gastronômicos e indivíduos que consomem esse tipo de alimento há décadas mostram que é possível comer orgânicos de forma acessível. E eles explicam porque isso é importante.

Gastronomia e sustentabilidade

O Toró Gastronomia Sustentável não tem (e não é) um restaurante. É um projeto que mora nos altos de uma casa em uma vila no bairro do Marco, junto aos seus idealizadores. Susane Rabelo e Wagner Vieira começaram a pensar a iniciativa em meados de 2014, antes do Wagner iniciar o curso de Tecnólogo em Gastronomia. O casal já havia se formado em outras áreas - ela em Geologia e ele em Biologia - e a ideia era de unir a alimentação aos seus estudos anteriores.

O projeto, que agora foi transformado em empreendimento, é itinerante. Eles participam de feiras e servem em eventos, mas no início só vendiam os produtos gastronômicos que começavam a desenvolver. “A gente até tem uma rotina muito aqui [na casa onde a entrevista foi cedida]. Precisávamos sair para apresentar o Toró. Nós começamos a mapear alguns lugares que pudessem dialogar com aquilo que a gente estava propondo”, diz Susane. Enquanto falavam sobre o começo do projeto, eles prepararam um café com pães assados na hora. Enfileiraram as comidas que queriam mostrar e uma delas era o início de tudo.

O que deu o pontapé na história do Toró foi a geléia de tucupi com pimenta cumari, que tem dois desafios: o tucupi orgânico e a pimenta de origem. Wagner começa falando que a maior parte dos tucupis vendidos são alterados de alguma forma: “o tucupi hoje ele já não é o produto de matriz como antigamente. Hoje já colocam conservante, corante”. Susane completa que, com o tempo, já é possível perceber qual tucupi é modificado e qual não é, pela cor, densidade, até o gosto. Mas é preciso, para chegar nesse ponto, confiar no fornecedor, estabelecer uma relação que Susane diz “mais humana”.

Pimenta cumari na horta orgânica do Toró (Foto: Toró)

Foto: Toró Gastronomia Sustentável

Wagner Vieira ministrando aula de gastronomia (Foto: Toró)

Já a pimenta cumari, a famosa pimenta-de-cheiro, é plantada na horta caseira. “Depois conversando com agrônomos, eles colocaram a situação de que essa pimenta, hoje ela é produto de várias combinações. Já não tem muito a pequenina, a de origem... Ela já tem outras características”, fala Susane. As sementes nativas, como a da pimenta cumari pequenina, não são geneticamente modificadas. Ou seja, próprias para a produção orgânica.

Consumo nas feiras

As sementes híbridas - resultado de cruzamento forçado, o contrário das nativas - são dominantes no mercado, e são o ponto de partida da maioria dos alimentos que consumimos ao comprar em supermercados. O professor William Assis, do Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural, que é membro do movimento agroecológico desde os anos 80, relata que, ao visitar uma das feiras agroecológicas de Belém (que ocorrem aos sábados e quarta-feiras), se deparou com um vendedor de milho verde de semente nativa: “Apareceu um cara lá vendendo, e não era milho híbrido, porque o grão era diferente. E quando eu cozinhei também, o sabor era outro”.

 

As feiras agroecológicas e a distribuição de “paneiros” (cestas de produtos que podem ser encomendadas) tentam quebrar com o padrão da alimentação que as grandes empresas ditam. E são uma opção mais popular e justa do que as seções de orgânicos nas gôndolas de supermercado. “Se você for no supermercado, você pode ver 1 quilo do arroz orgânico e 1 quilo do arroz comum. Uma crítica que a linha agroecológica faz é justamente isso: você cria uma certa elite que consome produtos sadios, enquanto a outra maioria da população fica sujeita ao arroz com agroquímico”, diz.

Feira do Pará Orgânico / Fotos: Madylene Barata

O professor também explica que agroquímico é um termo guarda-chuva que inclui agrotóxicos e também os adubos químicos. Ambos descaracterizam o alimento como orgânico e trazem malefícios para a saúde da população: “comer alimento saudável é questão de saúde pública, né?”.

Comer, comer

O consumo de alimentos orgânicos é dificultado, em parte, por aspectos culturais. William menciona o caso da batata inglesa contra a macaxeira. “Tem gente que pelo hábito alimentar adquirido por décadas com a família não consome a macaxeira como consome a batata inglesa. A batata inglesa tem veneno [sua produção utiliza agrotóxicos] e a macaxeira não. A maioria não tem produto químico, mas as pessoas prefe-

rem fazer um purê de batata inglesa do que um purê de macaxeira. É uma coisa simbólica”, diz.

Moqueca de banana da terra orgânica.

O gosto por alimentos que não são da terra também tem um impacto mais abrangente. De onde veio a comida do seu almoço? Susane Rabelo, do Toró, também espera que a valorização dos ingredientes locais diminua o impacto dos combustíveis na atmosfera. “A maçã, o morango… São frutas que viajam, que não são sustentáveis. A Amazônia é a maior biodiversidade do mundo, tem tantas frutas gostosas aqui, porque não levar estas frutas para uma escola?”, questiona.

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Um dos questionamentos é como fazer com que a escala de produção agroecológica aumente e que haja essa demanda. Educação ambiental e estrutura para feiras livres precisam de uma coisa: políticas públicas. William explica que os produtores deveriam ter mais apoio: “além de produzir, eles tem que se preocupar com organizar a estrutura de mercado, com os espaços, fica muito pesado. O poder público teria que colaborar”. Alimentação não é individualizada: ela é coletiva e pública, merecendo atenção da produção à mesa.

Contra quem?

Se o governo não investe nas agriculturas sustentáveis, quem ele incentiva? O Orçamento Cidadão de 2017 denuncia que o Governo Federal investe 35,8 bilhões no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). O número por si não diz muito, até porque o orçamento deste ano - diferente do que foi feito ano passado, que difere o investimento em agropecuária e na agricultura familiar - não aponta para quais setores da agricultura cada porcentagem deste dinheiro é redirecionada. Os destaques da proposta para 2017 incluem uma preocupação com a pesquisa, inovação e defesa agropecuária, de acordo com o próprio documento do orçamento.

 

Voltar os olhos para a agropecuária é assegurar o dinheiro do agronegócio. O agronegócio - ou agribusiness -, de acordo com Sérgio Sauer, autor do artigo “Agricultura familiar versus agronegócio”, significa “as atividades agropecuárias que utilizam técnicas de produção intensiva (mecanização e química)”. É o contrário das agriculturas sustentáveis e produz a maior parte dos alimentos que encontramos em supermercados.

 

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Essa mesma forma de produção já foi apontada como nociva tanto ao meio ambiente como um todo, mas também ao próprio sistema alimentar mundial. No documento “Falhas de longo prazo no sistema alimentar mundial” do pesquisador e professor de economia da USP, Ricardo Abramovay, é constatado que não são somente os agroquímicos da produção extensiva que são prejudiciais. O uso da água (o agronegócio corresponde a 70% do consumo mundial de água potável) e do solo (as monoculturas desgastam o solo com uma forma de plantação que anula a biodiversidade necessária para a reciclagem dos nutrientes) contribuem também para o desequilíbrio dos ecossistemas.


A organização de agricultores familiares, orgânicos e outros tipos de agricultores sustentáveis é um símbolo de resistência a esse modelo de produção que destrói e envenena. Escolher que tipo de agricultura iremos incentivar e qual a comida que vai encher o nosso prato é, também, político.

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